Farense capa

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quarta-feira, 9 de abril de 2014

José Rafael




“Farense é a minha paixão eterna”

Quantos Farenses somos? - Olá, José Rafael. Que é feito de si, passados 26 anos de se retirar do futebol?

José Rafael – Estou a trabalhar com duas marcas de artigos de desporto, uma delas ligada ao futebol, a Lotto.

QFS – Mas encontra-se por terras algarvias?

JR – Não, desde a época 83/84, a última em que joguei no Farense, que não estou no Algarve. Vivi muito tempo no Porto, agora estou a morar perto de Lisboa.

QFS – E continua a seguir o Farense?

JR – Sempre, é o clube do meu coração, a minha paixão eterna. Sou de Faro, comecei no Farense com 11 anos, fiz parte das primeiras equipas de escolinhas do clube. E depois cumpri o sonho de qualquer criança, o de jogar pelo clube da terra. Sou ainda hoje o jogador mais novo de sempre a jogar pela primeira equipa e o mais novo a jogar como titular.


QFS – Estreou-se com que idade na equipa sénior?

JR – Com 17 anos em 75/76. E só não me pude estrear na época anterior porque estava inscrito como juvenil, e nessa altura só se podia jogar pelos seniores estando inscrito pelo menos nos juniores.

QFS – Nessa época o Farense desce. Cumpre depois três temporadas na equipa principal, na II Liga, antes de sair para o Portimonense…

JR – E fui o melhor marcador da equipa em 77/78, com 18 ou 19 golos, mesmo tendo saído durante a época para o Canadá. Depois voltei e, apesar de uma lesão grave, acabei a época de 78/79 com 12 ou 13 golos. Foi aí que surgiu a oportunidade de ir para a I Liga, para o Portimonense.

QFS – Nesses três anos, o Farense tinha como objetivo a subida?

JR – Acho que a questão nunca foi colocada dessa forma, porque tínhamos muitos jogadores muito jovens. Mesmo assim, houve um ano em que andámos sempre perto dos primeiros lugares, mas a demasiada juventude e as muitas lesões que havia no plantel impediram a equipa de subir.



“A minha média de golos por jogo no Farense é superior à do Hassan”


QFS – Esteve duas épocas em Portimão, mas não foi muito feliz…

JR – Tive o azar de ter de ir para a tropa em Setembro. Nessa primeira época [79/80], o primeiro jogo que fiz no campeonato foi a cinco, seis jornadas do fim da época. Depois fiquei mais um ano e seguiu-se o Amora, que pela primeira vez na história estava na I Divisão.


QFS – Gostou de lá jogar?

JR – Sim, bastante. Tínhamos um bom lote de jogadores, malta nova com muito valor: vários acabaram por chegar à selecção, como o Jaime, o Jorge Plácido, o Ribeiro, além de mim. Os problemas nesse clube eram outros: a falta de pagamentos, por exemplo. Acabámos por descer em 82/83 por causa disso.

QFS – Por pouco não se cruzou lá com Vítor Baptista, lendária figura do futebol português, mas de certeza que ainda soube várias histórias dele…

JR – Havia uma sempre contada de uma ocasião em que estava a recuperar de lesão e se pôs a chutar bolas ao Jorge [guarda-redes] num quarto. Partiu três candeeiros (risos)! Mais tarde, quando eu já jogava no Setúbal, vinha ter connosco, a malta pagava-lhe o almoço e dava-lhe dinheiro, e ele perguntava “Só isto?” Já estava completamente agarrado aos vícios…


QFS – E em 83/84 voltou ao Farense, que estava de regresso à I Liga. Porquê?

JR – Porque o tinha prometido ao meu pai e às pessoas do clube. Tinha propostas muito, muito superiores em termos financeiros, dez vezes mais, de Académica, Guimarães, Beira-Mar, mas não podia faltar à minha promessa. E quando fui assinar, o presidente Barata retirou-me 15 por cento do valor que tínhamos acordado inicialmente. Aceitei à mesma, porque queria cumprir a minha palavra, mas ia trazer comigo três craques do Amora que mal viram aquele cenário foram embora. O presidente não tinha noção da qualidade daqueles jogadores.

QFS – Já era um clube diferente do que tinha conhecido nos anos 70?

JR – Sim, em todos os níveis. A entrada do presidente Barata mudou tudo, a nível de campos, de departamento médico, de equipamentos, estrutura, bons directores… Não tinha comparação, antes não tinha nada disso, andou ali uns anos a patinar. Os problemas depois foram outros… Por exemplo, entrámos no campeonato com o plantel ainda nem com dois terços da sua formação total! Essa época podia ter-nos corrido melhor com um plantel mais equilibrado. Na fase final caímos um bocado, acabámos duas ou três posições acima da zona de descida.

QFS – Até se lesionar com gravidade, era um dos melhores marcadores do campeonato nessa época…

JR – Era o melhor, do campeonato e da Taça! Se não tivesse partido a perna, quase de certeza tinha sido o melhor marcador do campeonato. Tinha jogadores de grande qualidade a servir-me, o Gil, o primeiro brasileiro titular na selecção a vir para Portugal, e outro brasileiro também muito bom no outro lado [César]. Há pouco tempo um amigo esteve a fazer a relação golos/jogo e concluiu que a minha média na equipa sénior é mesmo superior à do Hassan! E antes da época começar já tinha 9 ou 10 golos marcados nos particulares. Marquei logo no primeiro treino com bola, marquei 2 golos num particular com os húngaros do MTK…

QFS – Como se deu a grave lesão que o afastou dos relvados largos meses?

JR – Foi uma entrada do Jayme, um central brasileiro [hoje treinador do Flamengo] num treino, que me rebentou com os ligamentos. Levei várias semanas sem treinar, só a jogar sob o efeito de infiltrações. Era o querer jogar, ajudar a equipa. Mesmo assim, marcava: lembro-me de um jogo treino com o Quarteirense em que marquei “só” cinco ou seis golos de cabeça! Antes da primeira volta acabar já tinha 11 golos!

QFS – Nessa época jogou, entre outros nomes históricos do futebol português e do Farense, com Jorge Jesus, o actual treinador do Benfica. Ele já tinha esta forma de estar no futebol que lhe conhecemos enquanto treinador?

JR – Ele é que jogou comigo (risos)! Mas sim, via-se que já interpretava de forma diferente o que o treinador lhe pedia. Às vezes até se insurgia com as metodologias de treino do Mladenov, que tinha só levado a Bulgária ao Mundial de 74, enquanto Portugal não ia nunca a lado nenhum!



“Temos uma massa associativa superior a todos os clubes do Algarve juntos”


QFS – Muda-se então para o Boavista, onde acaba por chegar à selecção, tornando-se no primeiro jogador formado no Farense a consegui-lo!

JR – No Boavista cheguei à selecção A, no Farense já tinha ido à selecção olímpica. Fui o primeiro formado no Farense a chegar lá e fui o primeiro formado no Farense a marcar pela selecção num apuramento para o Mundial.

QFS – Nota-se a sua paixão pelo Farense a cada resposta!

JR – É um amor tremendo ao clube. Gosto muito de todos os clubes onde joguei, mas 95 por cento de mim é do Farense. Cheguei mesmo a ter alguns dissabores na carreira nos outros clubes por onde passei por dizer isto, não o interpretavam bem. Quando acabava qualquer jogo do Farense, o massagista do clube onde eu estava vinha logo dizer-me o resultado. E quando jogava pelo Farense, ficava com o dobro da azia quando perdia: a de jogador e a de adepto! Só uma pessoa nascida e formada no clube é que compreende esse sentimento. Chegar da Alemanha e ver o Farense em Vendas Novas, a jogar com os juniores; jogos em Aljezur, São Brás, milhentos sítios inacreditáveis… Há uma história que não esqueço em Portimão…

QFS – Conte!

JR – Há 30 anos, ganhámos 3-2 lá, com três golos meus, mas o árbitro invalidou-me um mal, ficou 2-2. Nesse jogo, a bancada em frente à principal do estádio do Portimonense estava cheia de adeptos do Farense. E as duas do lado, mais de metade era Farense. Lanço um desafio para que isto se volte a repetir!


QFS – Voltou a jogar no São Luís em 2010, no jogo de comemoração do centenário!

JR – Foi giro, a malta voltou a encontrar-se passados tantos anos. E para variar, marquei o primeiro golo do jogo (risos)!

QFS – Chegou a pensar que o clube não voltaria a um patamar como o actual?

JR – Sempre tive fé, sempre acreditei que era possível, que iria aparecer alguém para ajudar o clube. Nós temos o mais importante: massa associativa. Nesse aspecto, somos superiores a todos os outros clubes do Algarve juntos! Pode escrevê-lo mesmo assim, apesar de eu ter jogado no Portimonense! O meu pai continuou sempre a trabalhar, sempre a cobrar as quotas e houve sempre gente a pagá-las mesmo sem o clube competir! Isso é amor, a nossa massa associativa é fascinante, fantástica. Estou a dizer isto e até estou comovido!

QFS – E o regresso à I Liga, está para breve?

JR – Sinceramente, ainda nos falta melhorar em muita coisa. Temos de conseguir mais estabilidade em termos directivos. Falta um departamento médico profissional, um departamento de fisioterapia, e numa II Liga, isso paga-se muito caro. Para mim, este ano devia fazer-se um investimento nesse sector. Temos a trabalhar no clube pessoas que passaram por clubes com uma estrutura verdadeiramente profissional, como o Fajardo, que esteve no Guimarães, no Belenenses, ou o Hugo Luz, que sabem perfeitamente como se trabalha a este nível. É muito importante ter um bom departamento médico, caso contrário qualquer lesão leva meses e meses a curar… Temos de fazer um grande investimento nesse sentido para poder ombrear com outros clubes.

QFS – E em termos de plantel?

JR – Também é preciso uma mudança. Faltam jogadores com intuição de golo, por exemplo, e falta quem crie ocasiões. Muitas vezes, o futebol que é praticado é aos repelões, e temos de mudar isso.

QFS – Quanto ao apoio do público, considera que tem sido bom?

JR – Nos últimos tempos, tenho notado que está a ir cada vez menos gente ao futebol em Faro. Esse é um aspecto onde somos superiores a todos os outros clubes na II Liga e sei que, se subirmos, vamos encher muitas vezes o estádio, mas é preciso que as pessoas vão ao futebol mesmo na II Liga. E a nossa claque é fabulosa, única, maravilhosa, tenho uma enorme paixão por eles, mas nem sempre gere bem os tempos de jogo. Há períodos em que se tem de puxar pela equipa, há períodos em que se tem de fazer pressão sobre o fiscal de linha, sobre a equipa adversária… Mas pronto, eles são muito bons em muita coisa e não se pode ser em tudo. Eu era muito bom a jogar de cabeça, na impulsão, no remate, mas noutras coisas já não era tão forte. É mesmo assim.


“Não fui ao Mundial 86 por pressões de clubes grandes"




QFS – Pode dizer-se que acabou por ser decisivo para a presença de Portugal no Mundial de 1986, pois marcou um dos golos da vitória apertada sobre Malta por 3-2 no jogo em que se estreou!

JR – Sim, entrei ao intervalo, fiz uma grande exibição e também estive bem nos últimos minutos da vitória histórica sobre a Alemanha [onde Portugal se apurou para o Mundial com o golaço de Carlos Manuel]. Além disso, fui o terceiro ou quarto melhor nos testes físicos, nos treinos marcava golos, é ler as crónicas dos jornais na altura.

 

QFS – Mas acabou por ficar de fora da lista final…

JR – O José Torres, então o seleccionador, disse quando Portugal se apurou que eram aqueles jogadores que iam ao México. Entretanto, continuei a marcar nos últimos jogos do campeonato [terminou a época com 10 golos], e depois não fui convocado. Mais tarde, quando ele foi treinar o Boavista, pediu-me desculpa e disse que tinha sido pressionado para levar jogadores de clubes… mais fortes.

QFS – Nessa época de 85/86 disputou a Taça UEFA, onde também marcou!

JR – Marquei dois golos ao Club Brugge, que na altura era o maior clube da Bélgica, campeão quatro ou cinco anos seguidos. Tinham uma grande equipa, com Papin, Degryse, Ceulemans, Van der Elst. Ganhámos 4-3 no Bessa, mas lá perdemos 3-1.

QFS – 86/87 é que já não correu tão bem: fez apenas 17 jogos e 5 golos…

JR – Levei um pontapé do Nelito e andei muito tempo com um problema gravíssimo, nem conseguia correr. Os árbitros na altura eram muito permissivos, não viam como os defesas limavam os pitons. Os avançados sofriam muito. Depois saiu o João Alves, entrou o José Torres e depois o Pepe, e no fim da época decidi sair. Tive um convite do Setúbal e estava chateado com o Valentim Loureiro, que se tinha posto do lado do Amora na questão dos ordenados que me ficaram a dever: um ano no total! Por isso saí. Mas devo muito ao Boavista, e aproveito a ocasião para dizer que estou muito satisfeito pela decisão que o devolve à I Liga. Deixo o meu abraço a todos, desde os dirigentes ao Petit, e à claque dos Panteras, que tal como os South Side são fantásticos. Há pouco tempo fui lá e tive uma recepção que me deixou comovido, não me esqueceram. Com todo o respeito para os clubes que estão agora na I Liga, mas o Boavista é um histórico e pertence ao principal escalão do futebol português.
QFS – Depois do Boavista, representou ainda o Setúbal e o Belenenses…

JR – No Setúbal comecei bem, mas depois sofri uma lesão complicada numa brincadeira com o Neno e acabei por perder o lugar.

QFS – A concorrência também era complicada, com nomes como Manuel Fernandes ou Jordão…

JR – Eram dois craques. O Jordão vinha de uma paragem de ano e meio, mas mesmo assim ainda marcava muitos golos. Tinha boa relação com eles, já os conhecia da selecção e falei com o Manel quando fui convidado para jogar no Sporting.

QFS – Teve uma proposta do Sporting?

JR – Sim, no ano em que fui à selecção. Mas o Boavista pediu muito dinheiro, o João Alves não queria que eu saísse, e acabei por ficar.

QFS – Depois foi para o Belenenses, mas nem chegou a jogar a nível oficial…

JR – Rasguei o tendão de Aquiles, tive de ser quatro vezes operado, porque as coisas foram mal feitas. As feridas infectavam, duas semanas depois da operação criavam pus e tinham de ser abertas de novo. Foi a mesma lesão que o Helton [do Porto] teve agora. Não deu para jogar mais. Mesmo assim, já depois de estarmos retirados, fizemos um jogo com o plantel do Belenenses. Marquei três golos e o Jordão dois. Pela frente tínhamos nada mais nada menos que o Paulo Madeira…


“Quando vejo um avançado, sei à primeira vista se tem ou não capacidades"

Quem foram os melhores jogadores com quem jogou?

JR – Podia falar do Jordão, do Manuel Fernandes, do Filipovic, com quem joguei no Boavista, do João Alves, já veterano mas ainda com uma técnica invulgar. Tínhamos um ataque tão forte no Boavista que o Folha, que vinha do Benfica, nem ao banco ia. Coelho, Tonanha, Zé Pedro, depois o Bertolazzi e o Nunes, que tinha ganho a Libertadores pelo Flamengo. Mas joguei com tão grandes jogadores, em tantas posições, que não me ficava bem estar a individualizar.

QFS – E treinadores?

JR – Otelo Valério, ainda nas camadas jovens do Farense. Chumbinho, Bentinho, o tio do Balela. Fernando Mendes, Assis, o Pedro Gomes, que me treinou nos juniores e nos seniores. Luís Mira, também. Depois o Mladenov e o Cajuda, em 83/84. O João Alves, o Mário Wilson, o José Torres, o Malcolm Allison no Setúbal. Uma vez quis pôr-me a defesa esquerdo, num jogo treino com o Gotemburgo, e até marquei nesse jogo. Depois lesionei-me e o Hernâni [mais tarde jogador do Benfica que já tinha passado pelo Farense] ficou com o lugar. O Manuel Fernandes, que vi logo que ia ser treinador e que até estranho como não fez uma carreira melhor – talvez por ser boa pessoa de mais… No Belenenses, o Marinho Peres. Houve ainda o Manuel de Oliveira, o primeiro treinador nos séniores do Farense, ou o [António] Medeiros, que no Amora esteve 16 ou 17 dias sem aparecer para treinar porque tinha um mês de salários em atraso. Depois foi com a equipa para Guimarães, onde levámos 7-1, e no fim deu uma entrevista a criticar os jogadores por falta de empenho…


QFS – Como se descreve enquanto jogador?

JR – Era um ponta de lança nato. Um jogador de área, com intuição, rapidez de execução, remate de primeira, concretizador. É por isso que quando vejo um avançado jogar, à primeira vejo logo se tem ou não capacidade. O futebol só tem duas posições específicas: guarda-redes e ponta de lança. Em pequenino, todos querem marcar golos, e depois há os malucos que têm aquela pancada para defender!

QFS – Quer deixar uma mensagem aos adeptos do Farense?

JR – Continuem a apoiar a equipa sempre, façam do São Luís um inferno, não deixem de lá ir. Nos últimos tempos perdemos predominância em casa, vai menos gente ao estádio, há menos apoio e isso não pode acontecer. É muito importante exercer o factor casa. Atravessámos o deserto do Saara, dos Andes, todos os desertos possíveis, e se Deus quiser iremos estar brevemente na I Liga a dar cabo da cabeça aos grandes. Na final da Taça de Portugal, em 89/90, fiz 6 mil t-shirts com uma única expressão: Farense sempre! É isso que quero ver sempre nesta massa associativa.

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