Quantos
Farenses somos? - Olá, Alexandre. Já deixou de jogar há muitos
anos, que faz actualmente?
Alexandre
Alhinho
– Depois de deixar de jogar, acabei a licenciatura em Educação
Física em Lisboa, na Faculdade de Motricidade Humana, e voltei para
Cabo Verde, onde sou professor de Educação Física e Administração
e Gestão desportiva. Já fui seleccionador de Cabo Verde, levei a
equipa à primeira fase de qualificação para um Mundial, o de 2006.
Quando cheguei estávamos em 162º no ranking da FIFA, comigo
recuperámos 80 lugares! Fiz a travessia do deserto, andava à porta
dos estádios a pedir aos jogadores para irem à selecção e ninguém
queria. Introduzi mais rigor, outro padrão, porque a selecção era
completamente amadora. Hoje, já todos querem ir. Entretanto deixei
de ser treinador, porque aqui em Cabo Verde o futebol é amador,
gastamos dinheiro em vez de ganhar. Fui estudando sempre, mesmo
enquanto jogava.
QFS
– E foi sempre acompanhando o Farense nestes anos?
AA
– Sim. Foi com muita tristeza que fui sabendo que o clube ia
descendo até acabar, e depois andar pelos distritais, foi um grande
sofrimento. Neste momento sinto uma grande alegria por vê-lo de
volta à II Liga, é um clube que me marcou, onde joguei com pessoas
excepcionais. Tenho visto alguns jogos que passam na televisão e
fiquei admirado por ver a equipa jogar no S. Luís novamente, pensava
que iam jogar no Estádio novo de Loulé. É um prazer rever aquele
estádio.
QFS
– Acredita num regresso à I Liga num futuro próximo?
AA
– É preciso algum tempo na II Liga para ganhar estabilidade. O
Farense precisa de consolidar a sua posição e depois ganhar
balanço, a II Liga é uma divisão muito competitiva. É preciso
tempo para construir uma boa equipa, com melhores jogadores, e depois
sim pensar em subir. A equipa precisa de mais estofo, digamos assim.
Mas Faro é capital de distrito, a cidade merece um clube na I Liga.
Olhe, os farenses daí não devem saber, mas há um clube em Cabo
Verde que foi fundado em 1982/83, quando o Farense fez uma digressão
por aqui. Chama-se Farense de São Vicente e acabou de ser campeão
da II Divisão e subir à primeira! Temos aqui bons jogadores, os
portugueses é que não sabem. Vão sabendo agora através da nossa
selecção.
QFS
– É verdade, muitos dos adeptos farenses souberam disso este ano
através do Facebook!
AA
– Ah sim? Ainda bem. Esta é uma prova do impacto que o Farense
causava nos sítios por onde passava, pelas equipas que tinha e o
futebol que praticava.
QFS
– Pode dizer-se que o Farense ficou no seu coração?
AA
– Sim. Os meus dois clubes do coração são a Académica (onde se
formou e onde jogou dois anos como sénior) e o Farense. Adorei viver
em Faro, não vou lá desde que saí do Farense mas estou a pensar
voltar ainda este ano. Gente muito simpática, muito alegre, onde
sempre fui bem recebido e sempre tive amigos. Da primeira equipa
então (1973/74), tenho muitas saudades de todos, éramos uma
verdadeira família.
“Cheguei
à selecção A com 19 anos devido ao Farense”
QFS
– Quando chegou a Portugal?
AA
– Cheguei a Portugal aos 16 anos, a Coimbra, para estudar. Nem era
futebolista. O meu irmão (Carlos Alhinho) jogava na Académica e um
dia fui ver uma final de juniores entre a Académica e o Benfica,
onde jogavam Shéu e João Alves. No fim, o meu irmão perguntou-me:
“Achas que aguentavas jogar aqui?” Eu disse que sim e então ele
levou-me para treinar com os juvenis. Ao fim de poucos treinos, o
treinador Andrade passou-me logo para os juniores, onde joguei
enquanto ia treinando com os seniores. Fui o único, com Gregório
Freixo, a representar a Académica na selecção de juniores.
QFS
– E como surgiu a hipótese de vir para o Farense?
AA
– Entretanto o meu irmão saiu para o Sporting, a direcção da
Académica não gostou e disseram-me: “Podes ficar, mas não te
vamos pagar nada”. Fiquei um ano inteiro a treinar sem jogar e no
ano seguinte, o meu irmão soube que o Farense precisava de um
central e mandou-me lá para o treinador da altura, Carlos Silva, me
observar. Ao fim de um treino ou dois, fiquei logo na equipa – até
me levou para viver na casa dele nos primeiros tempos! Fizemos uma
época excepcional e eu também, cheguei a ser chamado à selecção
A para um jogo com a Inglaterra. Isto, estando no Farense e com 19
anos, foi uma grande surpresa. Eu quando fui ver a convocatória nem
reparei que o meu nome estava lá, só o vi depois quando amigos me
disseram. E estava, lá no fim. Depois, no fim da época, o Porto foi
logo buscar-me. Mas devia ter ficado no Farense, hoje arrependo-me de
ter saído logo.
QFS
– Porquê?
AA
– Porque aquele Porto tinha um plantel muito forte, e a estrutura
já era de topo, eles tinham tudo, até um consultório dentário
dentro do estádio!, mas o ambiente lá dentro era péssimo, havia
muita fricção entre os jogadores da casa e os de fora. Depois de
ter vivido numa verdadeira família, quando estive no Farense, ali
encontrei feras, eu que tinha 20 anos e só uma época como sénior.
O treinador era o Aymoré Moreira, que tinha sido bicampeão do mundo
como seleccionador do Brasil, e acabou despedido a meio da época. E
atenção, fui recebido no aeroporto de Pedras Rubras como estrela de
Hollywood! Os outros passageiros daquele vôo até ficaram espantados
com a quantidade de fotógrafos que estavam ali!
QFS
– Ainda se lembra do seu primeiro jogo na I Divisão?
AA
– Claro, foi o jogo que marcou o meu futuro no futebol em Portugal.
Foi na sexta jornada, antes não podia ser chamado por causa do
certificado. Era em Alvalade, com um Sporting que viria a ser o
campeão, com Damas, Yazalde, o meu irmão... Nós éramos uma equipa
muito forte, resistente, que defendia muito bem, mas ao intervalo já
estávamos a perder 3-0! Então, o treinador Carlos Silva chamou-me
para entrar e fiz uma segunda parte muito boa, não sofremos mais
golo nenhum. Todos ficaram surpreendidos, não sabiam de onde tinha
aparecido aquele jogador assim de repente! No dia seguinte, o Manuel
José, que hoje é treinador, foi buscar-me a casa para irmos beber
um café e falar do jogo, toda a gente tinha ficado impressionada
comigo.
QFS
– E a partir daí, nunca mais saiu da equipa!
AA
– Não, fui sempre titular. Lembro-me de um jogo na Luz, onde
joguei no meio-campo e a minha missão era marcar o Eusébio, o meu
herói de infância que na altura jogava mais recuado. Eu estava
muito nervoso, seis anos antes via aquele homem a marcar 4 golos à
Coreia no Mundial e agora ia marcá-lo! Ele percebeu isso e, ainda no
túnel, abraçou-me e disse que já me tinha visto jogar, para eu
fazer o meu futebol e ficar tranquilo. Tirou-me aquela carga toda de
cima dos ombros!
QFS
– E o jogo correu-lhe bem?
AA
– Não, nada. Perdemos 1-0, com um golo... do Eusébio no primeiro
minuto! Ele não era nada fácil de marcar, corria muito. Mas o
Carlos Silva não ficou chateado, porque naquela altura, perder 1-0
na Luz não era nada mau. Depois disso fizemos grandes exibições,
que me lembre, quase ninguém passou no S. Luís. Ficámos em sexto
ou sétimo, a melhor classificação do clube até então. Tínhamos
uma equipa excepcional, jogadores todos muito educados, muito
maduros, com Farias, Adilson e o grande Mirobaldo na frente, o Manuel
José... O Mirobaldo era uma estrela, sabíamos que era só
passar-lhe a bola que ele resolvia tudo, era um jogador
extraordinário. Não sei como os grandes nunca o foram buscar... E o
Almeida, que falava pouco mas era um grande líder em campo!
QFS
– Consegue explicar o sucesso de uma equipa que na altura era um
“bebé” na I Divisão (cumpria apenas a terceira época no maior
escalão)?
AA
– Foi uma série de fatores que se conjugaram. O Carlos Silva tinha
jogado muitos anos no Belenenses, sabia muito de futebol e punha a
equipa a jogar um bom futebol. Foi o grande obreiro daquela época.
Quando me foi buscar a primeira vez, eu fechei a porta do carro dele
devagar, com cuidado, e disse-me logo: “Feche a porta com genica!”
Estava sempre a empurrar-me para ser mais activo. A direcção também
era muito interessante, e depois tínhamos essa grande equipa.
“O
presidente Fernando Barata dava tudo pelo clube”
QFS
– Já contou a má experiência no Porto. Voltou depois à
Académica, onde jogou duas épocas...
AA
– Aí recuperei a auto-estima, deu-me força para continuar no
futebol e ao mesmo tempo voltar a estudar. Essa experiência no Porto
mostrou-me que o futebol é perigoso. A primeira época começou mal,
mas depois chegaram o Joaquim Rocha, que marcava de todos os lados, o
Camilo, os irmãos Campos (Mário e Vítor), o Rui Rodrigues...
fizemos uma equipa extraordinária. Safámo-nos da descida na última
jornada, em Guimarães, e fizemos uma festa como se tivéssemos sido
campeões! No ano seguinte fizemos uma grande época, acabámos em
quinto. E ao mesmo tempo, terminei o liceu.
QFS
– E foi bem recebido, apesar da forma como tinha saído?
AA
– Sim. O presidente João Moreno tinha actuado de má fé, mas uma
pessoa não pode estragar um clube. As pessoas já me conheciam, o
treinador era o José Crispim, que já me conhecia dos juniores.
Assim que cheguei, disse-me logo: “Isto aqui não é os juniores,
onde ganhas a bola e arrancas por aí fora. Aqui não há
brincadeiras!”
QFS
– Depois faz cinco épocas no Belenenses. Todas boas?
AA
– Os três primeiros anos foram excepcionais. Depois fui convidado
para jogar nos Estados Unidos, no Jacksonville Tea Men, onde joguei
com o Artur Correia, ex-Benfica e Sporting, e muitos craques ingleses
da altura. O treinador era o Noel Cantwell, que tinha jogado naquela
grande equipa do Manchester United que morreu quase toda no desastre
de avião. Estreei-me contra o Johan Cruyff. Os americanos estavam a
apostar forte naquele campeonato, a NASL, estava a léguas do
português em tudo: organização, patrocínios, salários, tudo.
Eles compraram mesmo o meu passe, mas entretanto tive de regressar
por causa da família e nessa altura, o Belenenses estava em queda
livre! Só o senhor Rui da Cruz é que ajudava o clube, mas ele
sozinho não conseguia suportar aquela derrocada. Foi uma grande
pena. Mas o Belenenses é um clube difícil porque não tem gente,
não tem adeptos. O tempo que joguei lá, não via adeptos no
estádio, levava meia dúzia de gente às bancadas e ainda hoje isso
se vê. Por isso, é um clube que vai estar sempre em dificuldades.
QFS
– E passados nove anos da saída, aceitou voltar ao Farense em
82/83, mesmo na II Divisão!
AA
– É verdade. Surgiu essa possibilidade e aceitei na hora! Eu
estudava na altura, sabia quem era o Hristo Mladenov, um treinador
muito conceituado, que tinha levado a Bulgária ao Mundial, e pensei
logo: “Não posso deixar de conhecer esse homem!” E criámos uma
grande relação. O presidente era o Fernando Barata, um homem que
tinha as suas particularidades, mas que dava tudo pelo clube. Aliás,
o ir buscar o Mladenov à Bulgária diz muito.
QFS
– E foi campeão!
AA
– Sim, recuperei a minha alegria no Farense. No ano seguinte, o meu
irmão foi para lá terminar a carreira de propósito para podermos
jogar juntos, foi bom.
QFS
– Nessa época de 83/84, marca o único golo da sua carreira na I
Divisão!
AA
– Foi na Luz, ao Bento. O Gil entregou-me a bola no meio-campo, fiz
um sprint vigoroso e rematei rasteiro à entrada da área. Foi um
golo histórico na altura, por ser o primeiro de sempre do Farense na
Luz, e depois o José Rafael marcou outro. Mas perdemos 6-2... Também
marquei em jogos da Taça e da II Divisão ao longo da carreira, mas
sim, na I Divisão, esse foi o único. Jogava muito recuado, sempre a
central ou como lateral de ambos os flancos na segunda passagem, mas
naquela altura os defesas pouco podiam subir. Era nos cantos e pouco
mais.
QFS
– No final dessa época decide abandonar o Farense. Porquê?
AA
– As coisas já não estavam como antes. O presidente tinha
despedido o Mladenov, um homem a quem, na minha opinião, não se deu
o devido valor em Portugal. Era um treinador excepcional e um homem
extraordinário. Então, decidi acabar a carreira e voltar a estudar.
QFS
– Mas ainda joga por Lusitano de Évora, Estoril e Académico de
Viseu posteriormente...
AA
– Fui jogar para o Lusitano para ajudar o meu irmão, que era o
treinador. Mas não havia dinheiro, não recebi um tostão no tempo
em que lá estive e ainda ajudei a pagar a alimentação de alguns
colegas! E no Estoril também não recebi nada, joguei lá porque o
Mário Wilson, que era o treinador, me pediu, e não podia recusar um
pedido do velho capitão. Além disso, tinha lá um ou dois amigos e
como vivia em Oeiras, aceitei dar uma ajuda. Mas o Estoril falhou a
subida, as expetativas eram altas mas infundadas e fora da realidade
do clube naquela altura. É um problema que ainda hoje acontece
nalguns clubes...
QFS
– E como chegou a Viseu?
AA
– Fui fazer só o último jogo da época 86/87, porque o meu irmão
Carlos era o treinador também e me pediu. Era um jogo em que a
equipa tinha de vencer para conseguir a permanência. E assim
aconteceu. E na época seguinte a mesma coisa, mas para subir: fui
fazer os jogos finais e conseguimos ser campeões! Então, como
estava a terminar a faculdade e já só me faltava fazer a fase do
seminário, aceitei o convite do meu irmão para fazer parte do
plantel desde o início da época. Ajudei-o a fazer toda a
planificação da temporada, mas o Académico também não tinha
dinheiro – o meu irmão não teve nenhum dos reforços que pediu,
teve de jogar só com a prata da casa, e foi muito difícil. Acabámos
por descer.
QFS
– Para quem não sabe, o seu irmão, já falecido, foi
internacional português em variadíssimas ocasiões e foi dos poucos
até hoje a jogar nos chamados três grandes!
AA
– Foi o primeiro!
QFS
– Mas acabou por fazer uma carreira modesta como treinador...
AA
– Não lhe deram o valor que merecia. É muito difícil para um
treinador africano triunfar na Europa. Ele era um estudioso do
futebol, tinha formação académica superior, mas só lhe deixavam
treinar equipas pequenas, onde estava condenado à descida desde o
início. Acabou por ficar desencantado com o futebol português e
depois foi fazer pela vida. Treinou muitas equipas em África e na
Ásia, ganhou algum dinheiro, mas faltou-lhe o reconhecimento na
Europa como treinador.
QFS
– E em Viseu ainda jogou com outro irmão seu, o José Alhinho!
AA
– Sim, é o meu irmão mais novo. Fez uma carreira mais modesta,
mas passou por Olhanense e Portimonense, entre outros (também jogou
no Farense em 81/82). Também era central, nesse ano em Viseu fizemos
dupla os dois.
“Intimidava
os avançados com a barba cerrada e o cabelo afro”
QFS
– Como se descreve enquanto jogador?
AA
– Era muito rápido, de boa técnica, muito disciplinado em termos
tácticos. Cumpridor. Naquela posição, tínhamos de ter velocidade
e saber jogar.
QFS
– E tinha um bom porte atlético!
AA
– E tive sorte de nunca ter uma lesão na carreira. Não tenho um
único risco no corpo, nunca fui operado a nada. E ainda hoje jogo,
há pouco tempo ganhei o prémio de jogador mais veterano aqui no
campeonato de veteranos. Faço tudo, ténis, bicicleta, tudo.
Mantenho o mesmo físico de jogador!
QFS
– Já não tem é o cabelo afro!
AA
– Era a minha imagem de marca, isso e a barba cerrada. Isso juntado
ao porte atlético, acredito que intimidava um pouco os avançados
(risos)!
QFS
– Disse que foi chamado à selecção A com 19 anos, quando jogava
no Farense, mas não se chegou a estrear...
AA
– Não, acabei por jogar só na selecção B e na de esperanças
(sub-21). Naquela altura, os titulares eram sempre o meu irmão
Carlos e o Humberto Coelho, era muito difícil jogar ali. Eles não
saíam de lá! Como eu, houve vários outros bons centrais que
raramente jogaram na selecção por causa disso...
QFS
– Já disse também que ficou contente por ver o Farense voltar a
jogar no S. Luís. Porquê?
AA
– É um campo onde nos dava muito prazer jogar. O estádio não é
muito grande, mas tem quatro bancadas e naquela altura enchia sempre,
não cabia uma agulha! Vinha gente de todo o Algarve ver os nossos
jogos. Os limites do campo ficam mesmo em cima dos espectadores, o
calor humano sente-se ali em cima de nós. Os adeptos falavam cara a
cara connosco e com os adversários! É um ambiente fantástico. E
nunca vi acontecer nada de violência, foram sempre correctos com
toda a gente.
QFS
- Quem foram os melhores jogadores com quem jogou?
AA
– No Farense, Mirobaldo, Manuel José... Nos Estados Unidos joguei
com o Keita, que tinha jogado no Sporting e no Barcelona – nunca
tinha visto um avançado tão talentoso. E no Porto, o António
Oliveira, o Cubillas, o Flávio...
QFS
– E treinadores? Já falou de Carlos Silva e Mladenov...
AA
– Sim. Além desses, o meu irmão Carlos, claro, e também o Noel
Cantwell, nos Estados Unidos.
QFS
– Quer deixar uma mensagem para os adeptos do Farense?
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